Rezar e meditar a Sagrada Escritura, sintetizar e projetar a caminhada à luz da Palavra que ilumina os nossos passos é hábito desta família religiosa que se renova em cada assembleia capitular (cf. Sl 119,105)[1]. Desta vez, inspira-nos um versículo dos Atos dos Apóstolos que apresenta o caminho da Palavra e das comunidades: Eles eram perseverantes no ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações / Ἦσαν δὲ προσκαρτεροῦντες τῇ διδαχῇ τῶν ἀποστόλων καὶ τῇ κοινωνίᾳ, τῇ κλάσει τοῦ ἄρτου καὶ ταῖς προσευχαῖς (cf. At 2,42)[2]. É a Igreja nascente, que em meio às tensões com o judaísmo e suas sinagogas e as perseguições do Império romano, crescia e à luz do Espírito Santo, partia em saída missionária espalhando noutras terras a semente do Evangelho (cf. Lc 8,4-8)[3]. Vamos juntos rezar e meditar a perícope que ilumina e nos prepara para a 11ª assembleia capitular, considerando que a vida em comum dos discípulos do Senhor – koinonia – é a primeira forma utilizada por Lucas para designar as comunidades nos Atos das Apóstolos, que mais tarde serão denominadas com o termo Igreja – ekklēsía.
O CAMINHO DA PALAVRA E DAS COMUNIDADES
Nos Atos dos Apóstolos encontramos alguns sumários que assinalam o crescimento e a primavera da Igreja. Eles retratam de modo resumido a vida das comunidades e quase sempre são utilizados para nos confrontar e ajudar a pensar e repensar a Igreja e as casas da Província[4]. Esses pequenos textos que se iluminam reciprocamente e aparecem conectados entre si com elementos comuns e afinidades estruturais, têm acentuada adesão nos evangelhos e na literatura paulina. Não se trata de uma fotografia real da comunidade de Jerusalém e tampouco são frutos da imaginação de Lucas. Os sumários destacam o crescimento da Igreja mediante a ação do Espírito Santo e do testemunho dos apóstolos assinalando uma realidade idealizada das comunidades cristãs. Esses sumários relatam o cotidiano das primeiras comunidades que são apresentadas como modelos que nos provocam e permitem avaliar a realidade de nossa família religiosa, nossas casas e comunidades, lugar do testemunho, de fidelidade e serviço à messe, e também, plataforma da qual se parte e nos sustenta na missão.
Na frase que abre o primeiro sumário encontramos a nossa perícope e vemos quatro colunas que caracterizavam as comunidades: a perseverança no ensinamento dos apóstolos (didaqué), a comunhão fraterna (koinōnía), a fração do pão que assinala a eucaristia (klásei toû ártou) e as orações em comum (proseuchaîs)[5]. Cada uma destas colunas sustenta, qualifica e garante a credibilidade da Igreja e das comunidades. Observa-se ainda que cada coluna pede e pressupõe as outras e entre elas não se reconhece hierarquia alguma, mas igual importância e valor. Elas estão estreitamente vinculadas entre si e todas estão conectadas a todas.
Lucas começa o primeiro sumário com uma afirmação: Eles eram perseverantes (cf. At 2,42). Mas quem eram eles? Quem perseverava – eram assíduos – na doutrina dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações (At 2,42)[6]? Aqueles que estavam “reunidos no mesmo lugar” na manhã de Pentecostes, quando o Espírito prometido foi derramado sobre os discípulos (cf. At 2,1) ou os apóstolos com Maria, a Mãe do Senhor (cf. Lc 1,43), que “entraram na cidade e subiram para a sala de cima, onde costumavam reunir-se” (cf. At 1,13-14). A perseverança é um traço fundamental da comunidade cristã e aparece coligada à fidelidade. Pois o seguimento de Jesus não se reduz a um breve período de tempo e na repetição de certas práticas, mas se estende por toda a vida, garante a continuidade e manifesta a profundidade de nossa adesão e fidelidade criativa a Jesus, o Senhor da messe (cf. Lc 10,2).
O verbo perseverar é importante nos Atos dos Apóstolos e aparece repetidas vezes com o sentido de persistir, colocar-se a serviço de alguém, ser assíduo ou fiel… (cf. At 1,14; 2,46; 6,4; 8,13; 10,7). No evangelho de Marcos o termo é utilizado no sentido de colocar-se à disposição para atender Jesus (cf. Mc 3,9). Nota-se que perseverar não é um simples gesto de boa vontade de quem se coloca disponível por certo tempo – ou até se cansar – mas implica uma adesão, fidelidade e compromisso interior de convicções e raízes profundas.
No versículo escolhido (At 2,42) temos quatro perseveranças que consideramos colunas que caracterizam e sustentam as nossas comunidades. Vamos meditar cada uma das perseveranças e suas implicações no cotidiano, na vocação e missão de cada rogacionista e das comunidades[7].
I – PERSEVERAR NO ENSINAMENTO DOS APÓSTOLOS
A comunidade que nasceu em Pentecostes é o novo Israel, o povo peregrino de Deus chamado a viver em fraternidade, não como uma experiência passageira, mas com a perseverança / fidelidade que se estende no dia a dia da vida dos batizados, e de maneira especial e ainda mais intensa, de nós que professamos os conselhos evangélicos e o voto do Rogate. Se para o antigo povo de Israel perseverar significava observar a Torá, para os discípulos de Jesus e, de modo particular para nós religiosos, o verbo perseverar aponta para a vivência do amor, a caridade que se manifesta nas relações interpessoais ao interno das comunidades da Província e missão.
Jesus Cristo morto e ressuscitado é o Kerigma, o primeiro e principal anúncio da fé cristã transmitido pelos discípulos (cf. 1Cor 15,3-8)[8]. Os apóstolos não ensinaram uma doutrina, pois o discipulado cristão não se fundamenta no aprendizado da Torá ou na observância das antigas tradições de Israel, mas no seguimento de Jesus e na vivência cotidiana do mandamento do amor (cf. Jo 13,35). O ensinamento apostólico consistia em contar e testemunhar em atos e palavras a pessoa e a vida de Jesus Cristo, sua mensagem de amor e misericórdia, seu messianismo humilde e servidor, que não correspondia à expectativa dos judeus, e sua intimidade com Deus a quem chamava de Pai, Pai-Nosso[9].
Depois do drama do Calvário e da ressurreição do Senhor os discípulos de Jesus se recompuseram na fé pascal como ilustra várias cenas dos evangelhos (cf. Lc 24,13-35; Jo 20-21). Em realidade, a perseverança das comunidades no ensinamento dos Doze se sustentava não apenas na memória dos apóstolos, mas na vida que se vivia, no testemunho que se oferecia, no estilo de vida adotada no interior das comunidades na incansável busca da coerência evangélica. Os apóstolos não eram mestres ou gurus, mas testemunhas de Jesus Cristo morto e ressuscitado. Os próprios evangelhos não são outra coisa senão testemunho e interpretação da pessoa de Jesus, de sua obra, memória e meditação amadurecida no seio das comunidades[10].
Pedro, após o discurso no dia de Pentecostes quando afirmou que Jesus crucificado – morto – é o Messias, o Cristo ressuscitado e Senhor, despertou nas pessoas, comovidas pelo seu testemunho, uma pergunta tão simples quanto profunda: “o que devemos fazer?” Com simplicidade e sem rodeios, o apóstolo respondeu: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado… Os que aceitaram as palavras de Pedro, receberam o batismo. Naquele dia foram acrescentadas a eles cerca de três mil pessoas” (At 2,14-41). O significativo número de judeus e romeiros de Jerusalém que abraçaram a fé e aderiram à comunidade aponta para a ação generosa de Deus que nos perdoa e salva. Mas também assinala a abertura missionária, a força de atração do testemunho dos discípulos do Senhor, a oração – Rogate – e o serviço de animação vocacional das comunidades: eram autênticas comunidades de “pescadores de homens” (cf. Mc 1,17; Mt 4,19). O primeiro passo é a nossa adesão ao Senhor, morto e ressuscitado, que nos chama à conversão e à vida da comunidade, a Igreja e Congregação, com suas fragilidades e virtudes, na qual estamos inseridos e a qual nos acolhe como mãe, nutre, sustenta e educa na fé (cf. Jo 19,25-27)[11]. A conversão começa no coração de cada um de nós, passa pela comunidade e alcança nossas estruturas.
O discurso eficaz que culminou no batismo de três mil pessoas que acolheram o evangelho anunciado por Pedro e ingressaram na comunidade cristã, assinala a força da palavra e do testemunho dos discípulos de Jesus que caminham à luz de Pentecostes. O evangelista não se preocupa em justificar uma conversão de massa ou explicar como e onde se deu tal quantidade de batismos, em uma cidade com limitada reserva de água. Lucas sinaliza para a força do testemunho, a fraternidade e a unidade que caracteriza o nosso estilo de vida em comunhão, a descoberta do amor como principio da comunidade e o sentido da vida em Deus. Observa-se também a ação do Espírito Santo que conduz corações e comunidades, nos empurra e acompanha na missão.
II – PERSEVERAR NA COMUNHÃO
Perseverar no ensinamento dos apóstolos não significa apenas escutar a palavra e acolher o testemunho dos Doze, mas indica também a comunhão com os apóstolos, a koinonia da comunidade eclesial e religiosa. Trata-se de um dom de Deus que nos acolhe no circuito trinitário, pois a comunhão aponta para o testemunho de vivência do mandamento novo e nossa intimidade com o Pai e o Filho no Espírito (cf. Jo 13,34-35; 17,21-26). koinonia é permanecer, estar com Cristo e Ele em nós conforme a alegoria da videira (cf. Jo 15,1-17). A comunhão se dá no estar, no permanecer e viver com Jesus (cf. Jo 14,20.23)[12]. Ela se manifesta na solidariedade entre os membros da comunidade, quando carregamos os fardos uns dos outros como recorda Paulo aos Gálatas (cf. Gl 6,2). Porém, a nossa comunhão não se reduz à harmonia e à solidariedade com os irmãos da comunidade, mas finca suas raízes em Cristo e na sua íntima relação com o Pai. A nossa perseverança na comunhão fraterna, na oração e na fração do pão também reclama a partilha dos bens: “Todos os que abraçavam a fé, viviam unidos e possuíam tudo em comum” (At 2,44). Os bens em comum expressam o sentido de pertença à nossa família religiosa e se apresentam estreitamente vinculados ao voto de pobreza segundo a espiritualidade cristã e a tradição da Congregação. A comunidade dos filhos espirituais de santo Aníbal sabe que suas posses são dom de Deus e, portanto não há espaço para um espírito contrário ao evangelho e a experiência da partilha acontece com naturalidade e especial atenção aos pobres. As comunidades de nossa Província não são “autossuficientes”, mas interdependentes e se completam mutuamente na partilha do que cada um é e tem.
A partir do Concílio Vaticano II redescobrimos a eclesiologia de comunhão cristalizada no segundo sumário dos Atos: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava suas as coisas que possuíam, mas tudo entre eles era posto em comum” (At 4,32). Para alcançar o ideal apresentado por Lucas, ocorre promover e intensificar a espiritualidade de comunhão, fazendo dela uma realidade no interior das comunidades e com particular atenção nas casas de formação. Importa fazer de nossos ambientes “casa e escola de comunhão”, mas isso requer uma radical conversão a Cristo, uma dócil abertura à ação do seu Espírito Santo e um sincero acolhimento dos irmãos[13].
A comunhão cristã – koinonia / koinonèo – supõe a participação, a amizade, a relação fraterna, marcada pela solidariedade, a corresponsabilidade e indica o estilo de vida, as situações de reciprocidade no interior da comunidade e na sua proximidade com Jesus Cristo[14]. Lucas nos apresenta a comunhão dos corações e dos bens, da sensibilidade dos irmãos entre si para responder as necessidades de todos e de cada um e, especialmente, a comunhão com Cristo, no seu corpo e sangue, na sua cruz e ressurreição. No versículo capitular fica claro que a nossa comunhão se manifesta na perseverança ao ensinamento dos apóstolos – o magistério da Igreja e da Congregação – na comunhão dos bens e na fração do pão – a Eucaristia e os demais sacramentos que sustentam a nossa espiritualidade – e nas orações que dirigimos ao Pai de modo pessoal e comunitário atentos à tradição rogacionista. Para construir comunidades fraternas, precisamos estar entorno a Jesus e viver com intensidade os valores da fé e a Alegria do Evangelho[15]. Esta alegria se manifesta na experiência de comunhão fraterna entre nós e entre as casas da Província, lugar do qual vivenciamos a fidelidade ao Evangelho com a sua força de atração vocacional. Se entre nós não há fraternidade, se não somos verdadeiramente irmãos, é claro que não mereceremos novas vocações para a nossa família religiosa e comprometeremos o futuro. Recorda-se que o testemunho de adesão a Jesus e a vida fraterna em comunidade rejuvenesce e atrai vocações[16].
III – PERSEVERAR NA FRAÇÃO DO PÃO
A expressão fração do pão nos remete a eucaristia celebrada nas casas da comunidade que se reúne, faz memória do Senhor e partilha o alimento – Fazei isso em memória de mim (Lc 22,19)[17]. Tudo aponta para o amor, a ação de graças, o dom… É a vida em Deus, o amor da Trindade, é a celebração da fé e de nossa adesão ao Senhor. Na fração do pão está o centro da comunidade, lugar de louvor e da vida fraterna, a vida dos filhos de Deus, a comunhão da Igreja e da família rogacionista. Fica evidente como o tema da fração do pão está fortemente coligado com a comunhão fraterna, as orações e aos ensinamentos dos apóstolos. Tudo era celebrado nas casas, nas famílias onde não apenas viviam juntos, mas estavam em comunhão tendo em comum todas as coisas. A verdadeira terra prometida, mais que um território é a fraternidade, a solidariedade, a justiça, a partilha entre os irmãos nas comunidades. Recorda-se que os hebreus não podiam vender a terra – propriedade – porque tal gesto era compreendido como uma traição, um desacreditar da promessa divina, um delito. Mas Lucas afirma que os discípulos de Jesus “vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um” (At 2,45)[18].
Na origem da celebração Eucarística estava o costume das comunidades cristãs que ceavam com o Senhor mesmo depois de sua morte e ressurreição quando Jesus não estava mais fisicamente no meio deles. Desde o início da caminhada a comunidade celebra a ceia reunida entorno a mesa do Pão e da Palavra, a liturgia da Igreja alicerçada nos apóstolos, testemunhas oculares e fiéis de Jesus Cristo. O rito central consistia na fração de um grande pão ázimo que vinha partido e repartido na reunião da comunidade. Lucas amplia a experiência comunitária resumindo no sumário: “Perseverantes e bem unidos, frequentavam diariamente o templo, partiam o pão pelas casas e tomavam a refeição com alegria e simplicidade de coração” (At 2,46; cf. Lc 24,53). Alimentar-se juntos, comer e partilhar o mesmo pão em casa é sinal de amor, de respeito e fraternidade. A mesa é o lugar das relações, do perdão, da amizade que se experimenta na vida fraterna. Tal realidade é iluminadora para as nossas comunidades que buscam o ideal de Lucas de ser “um só coração e uma só alma”, unidos na oração e na eucaristia, na alegria e na paz[19]. Nós rogacionistas temos uma bonita e profunda tradição de amor à Eucaristia, herança da espiritualidade que recebemos do santo Fundador[20]. Ela é o cume para onde tende todas as nossas atividades e sustento para o serviço na messe do Senhor. É fonte de graça para a santificação de todos e a glorificação de Deus e para ela converge a Igreja e nela nossa família religiosa[21].
As primeiras comunidades celebravam a fração do pão em continuidade e superação com a páscoa dos hebreus, pois para os discípulos o cordeiro imolado é o próprio Cristo. Recorda-se também que junto à mesa do Pão, estava a mesa da Palavra, pois a “A Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera o próprio Corpo do Senhor”[22]. Mas, nesta altura do caminho e refletindo com Lucas a vida das comunidades cristãs, podemos indagar se realmente estamos convencidos da centralidade da Eucaristia e da Palavra? Nos questionamos ainda sobre o lugar e importância da Eucaristia e da Palavra no cotidiano das comunidades e na vida de cada rogacionista. Segundo os sumários de Lucas, a comunidade é edificada e se nutre na celebração da fração do pão – que educa o nosso espírito comunitário e nos conduz às obras da caridade, ao serviço missionário e ao fecundo testemunho do Evangelho na comunhão da Igreja, o Corpo de Cristo, a videira verdadeira (cf. 1Cor 12; Jo 151,7).
IV – PERSEVERAR NA ORAÇÃO
Se na fração do pão os discípulos celebravam e faziam memória do Senhor, na oração e na escuta da Palavra eles aprofundavam o diálogo com Deus – Estar com o Senhor, “dedicar-nos inteiramente à oração e ao serviço da Palavra” (cf. At 6,4). A oração pessoal e comunitária é a quarta e última coluna que sustenta a comunidade descrita no sumário de Lucas que vive o clima da fraternidade, da partilha e permanece aberta para acolher a todos. A comunidade celebra a fração do pão, participa da mesa da Palavra e é composta de pessoas orantes.
Após o nosso sumário vemos dois discípulos de Jesus subirem ao templo para a oração da hora nona (cf. At 3,1). Sabemos que os discípulos frequentavam o templo e as sinagogas, mas também rezavam em casa conforme ilustra a cena de Pedro, que estando em casa subiu ao terraço para rezar (cf. At 10,9). Depois de citar este exemplo de oração pessoal, assinalamos a oração comunitária quando Pedro deixou a prisão e foi para a casa de João Marcos onde muitos estavam reunidos para orar (cf. At 12,12). Neste contexto recordamos o primado da vida espiritual e cultivamos a espiritualidade na prática cotidiana da oração pessoal e comunitária além do amor à Eucaristia e à Palavra[23].
Lucas, ao descrever a vida da comunidade no sumário em questão – “Eram perseverantes /…/ nas orações” (At 2,42) – provavelmente se refere à oração feita três vezes ao dia em horas determinadas segundo a tradição de Israel e das comunidades cristãs conforme assinala a Didaqué (cf. At 3,1)[24]. Supõe-se que os discípulos de Jesus e as comunidades recitavam os salmos, o Pai-Nosso, cânticos, súplicas… (cf. 1Cor 16,22). Acrescenta-se também o Benedictus (cf. Lc 1,69-79), quando a comunidade agradece a Deus por ter enviado o “Sol nascente” e o Magnificat (cf. Lc 1,46-55) no qual Maria, porta voz de Israel, se alegra em Deus Salvador. Convém recordar que Lucas também apresenta Jesus como modelo de oração. Segundo o evangelista Jesus rezava sempre, em diferentes momentos e lugares[25]. Como hebreu piedoso, Ele rezava três vezes ao dia o Shemá: “Escuta, Israel! O Senhor é nosso Deus, o Senhor é um. Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e com toda a tua força…”(cf. Dt 6,4-9; 11,13-21; Nm 15,37-41). Importa destacar que Jesus rezou sozinho e com os discípulos e recordar a importância da oração pessoal e comunitária, pois uma não se dá sem a outra. Ambas se complementam e juntas testemunham e sustentam a nossa vida de fé e das nossas comunidades.
Claro que Lucas não foi testemunha ocular de tudo o que nos conta na sua obra. Mas coube a ele o trabalho literário de elaborar, ampliar ou simplificar os vários episódios para atender as exigências de suas narrativas que iluminam a vida das comunidades de todos os tempos. Lucas, que dedica sua obra a Teófilo, o amigo de Deus, ou seja, a cada um de nós (cf. Lc 1,3; At 1,1), apresenta o caminho da Palavra. O evangelista fez um discurso teológico historicamente fundado e nos oferece o ideal da vida das comunidades cristãs que partiram de Jerusalém, passaram pela região da Judeia e da Samaria, atravessaram os mares e alcançaram os confins da terra até chegar a Roma. O que os apóstolos receberam eles transmitiram às pessoas que encorpavam as comunidades e recebiam o batismo (cf. 1Cor 11,23). Na história de nossa família religiosa percebemos a mesma força carismática e missionária que impulsiona os rogacionistas para outras áreas geográficas e com especial atenção às periferias, fecundando novas regiões com a semente do Rogate e o serviço missionário.
[1] Os últimos capítulos celebrados pela Província São Lucas acolheram determinadas passagens bíblicas para iluminar as reflexões e decisões da assembleia. O 7º Capítulo celebrado em 2006 adotou o ícone do caminho de Emaús (Lc 24,13-35); 8º Capítulo (2010) – “O Senhor escolheu outros setenta e dois…” (Lc 10,1-3a); 9º Capítulo (2014) – “Para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja completa” (Jo 15,11); 10º Capítulo (2018) – “Ao ver as multidões, Jesus encheu-se de compaixão” (Mt 9,36).
[2] Em At 2,42 temos quatro dativos unidos dois a dois com um kaí. Na frase vemos a figura de linguagem denominada polissíndeto que consiste no uso repetitivo e excessivo de conjunções entre as orações. Também nos recorda as anáforas utilizadas no início das frases para reafirmar o que já foi dito anteriormente e usando sempre a mesma palavra no começo. No versículo percebe-se a síntese dos quatro momentos da celebração litúrgica da comunidade: ensinamento inicial, a oferta dos dons, a fração do pão e a oração final. Cf. JEREMIAS, J. Le parole dell’Ultima cena. Brescia: Paideia, 1973.
[3] Lucas organizou a sua obra em dois volumes: no primeiro, o evangelho de Lucas, temos o caminho de Jesus. No segundo e último volume temos o livro dos Atos dos Apóstolos que apresenta o caminho da palavra e das comunidades. Sua obra abraça toda a história da salvação e foi dividida em dois tomos pelos cristãos do segundo século para amenizar o seu tamanho. O procedimento de dividir grandes obras aparece repetidas vezes no Antigo Testamento: 1 e 2 Samuel; 1 e 2 Reis; 1 e 2 Crônicas; 1 e 2 Macabeus. Os capítulos 1 e 2 do evangelho de Lucas são chamados de “o evangelho da infância de Jesus” – a passagem de Israel para a pessoa de Jesus. Os dois primeiros capítulos dos Atos são considerados “a infância da Igreja” – a passagem de Jesus à comunidade/Igreja.
[4] Os três primeiros sumários são maiores e os demais contam com apenas um versículo (cf. At 2,42-47; 4,32-35; 5,12-16; 6,7; 9,31; 12,24; 16,5; 19,20).
[5] O versículo que acolhemos para iluminar o Capítulo (At 2,42) aparece no início do primeiro sumário situado entre dois discursos de Pedro (cf. At 2,1-41; 3,11-26) e seguido da cura de um aleijado no templo de Jerusalém mediante a ação dos discípulos que continuam a obra do Senhor (cf. At 3,1-10).
[6] “É claro que nas primeiras comunidades havia desentendimentos, conflitos e desafios a serem superados. Lucas apresenta os primeiros cristãos de modo idealizado. Mais que descrever a vida das primeiras comunidades, o evangelista nos oferece um paradigma para ser referência às comunidades de ontem, de hoje e do futuro.” Cf. MAIA, G. L. O Pai-Nosso palavra por palavra. São Paulo: Paulinas, 2020, p. 76 (nota 9).
[7] Neste contexto recorda-se a Didaqué, doutrina dos Doze Apóstolos, “contemporânea” à obra de Lucas, e marco na unidade das comunidades cristãs que se distanciavam do templo (judaísmo). Recorda-se também a Carta de Diogneto, escrita algumas décadas depois. Esta “jóia da antiga literatura cristã” assinala o tema da fraternidade e da solidariedade, trata do jeito dos cristãos e a relação deles com o mundo. A esses documentos soma-se uma grande quantidade de outros textos até chegarmos aos escritos do Pe. Aníbal e da Congregação.
[8] Esta passagem da carta de Paulo à comunidade de Corinto é a mais antiga profissão da fé cristã, amadurecida no ambiente palestinense por volta dos anos 30. É a fórmula originária do kerigma – o núcleo da mensagem da fé: a ressurreição de Cristo por obra do Pai. Cf. RATZINGER, J. Il cammino Pasquale. Milano: Ancora, 2000, p. 111.
[9] Nos Atos dos Apóstolos contamos 24 discursos que assinalam a “doutrina” dos apóstolos. Pedro fez oito discursos (cf. At 1,16-22; 2,14-40; 3,12-26; 4,8-12; 5,29-32; 10,34-43; 11,5-17; 15,7-11). Paulo fez nove (cf. At 13,16-41; 14,15-17; 17,22-31; 20,18-35; 22,1-21; 24,10-21; 26,6-23; 27,21-26; 28,17-20). Os outros sete discursos são: Gamaliel (cf. At 5,35-39), Estevão (cf. At 7,2-53), Tiago (cf. At 15,13-21), Demétrio (cf. At 19,25-27), o escriba de Éfeso (cf. At 19,35-40), Tertulo (cf. At 24,2-8), Festo (cf. At 25,24-27).
[10] Cf. MAIA, G. L. O Discípulo Amado. São Paulo: Paulinas, 2021, p. 13.
[11] Cf. Lumen Gentium, 63. Catecismo da Igreja Católica, 168-169.
[12] O termo Koinonia tem diferentes significados nas cartas paulinas, mas em Lucas é um hapax que assinala a união espiritual dos fiéis, a prática da caridade e da esmola, a comunhão de bens ou mesmo a comunhão que nasce da Eucaristia. Cf. MAIA, G. L. O Discípulo Amado. São Paulo: Paulinas, 2021, p. 91-92.
[13] Cf. Novo Millennio Ineunte, 43.
[14] Lucas, conhecedor da cultura helênica, descreve a comunidade cristã de Jerusalém de maneira semelhante à descrição que Platão faz dos guerreiros de Atenas que não possuíam propriedades. O evangelista também recorda os ideais de Pitágoras de uma sociedade de amigos onde tudo é de todos. Cf. ROSSE, G. Atti degli Apostoli, commento exegético e teológico. Roma: Città Nuova editrice, 1998, p. 164.
[15] O Papa Francisco recorda: “Onde estão os consagrados sempre há alegria”. Cf. CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Ano da Vida Consagrada, “Alegrai-vos”. Carta circular aos consagrados e às consagradas do Magistério do Papa Francisco. São Paulo: Paulinas, 2014, p.3. Veja também: PROVÍNCIA ROGACIONISTA SÃO LUCAS. A Alegria do Rogate. Identidade e missão Rogacionista. Documento conclusivo do 9º Capítulo Provincial. Escritos Rogacionistas 32. São Paulo, 2015.
[16] Cf. Exortação Apostólica pós-sinodal Vita Consecrata, 64.
[17] As expressões fração do pão e ceia do Senhor são as duas formas mais antigas da Igreja para designar a celebração da Eucaristia (cf. At,2,42.46; 1Cor 11,20).
[18] Muitos especialistas encontram dificuldades para atestar que a partilha dos bens foi uma prática comum na origem das comunidades. Cf. BARRETT, C. K. Atti degli Apostoli 1, Commentario Paideia. Brescia: Paideia editrice, 2003, p. 201-202.
[19] Cf. RAMPAZZO, B. La mostra comunione di vita con Cristo e con i poveri. Lettera circolare alla Famiglia del Rogate, p. 20 (n. 11).
[20] Sobre o tema da Eucaristia, o Santíssimo Sacramento efetivo e Fundador da Pia obra, os interesses do Coração de Jesus, a festa de 1º de julho em todos os detalhes… cf. ANNIBALE MARIA DI FRANCIA, Regolamenti.Scritti 6. Roma: Editrice Rogate, 2010, p. 396-424.
[21] Cf. Sacrosanctum Concilium, 10.
[22] Cf. Dei Verbum, 21.
[23] Cf. DOCUMENTO DO IX CAPÍTULO GERAL. Chamados a estar com Ele, o primado da vida espiritual. Escritos Rogacionistas 16. São Paulo, 2000.
[24] Cf. Didaqué, Cap. 8.
[25] “No evangelho de Lucas, frequentemente encontramos Jesus em oração. Ainda adolescente, vemos Jesus na casa do Pai (Lc 2,46-50) e, no início de sua vida pública, quando era batizado por João, na beira do rio Jordão, ele também estava em oração (Lc 3,21). Ele orou no deserto, onde foi tentado (Lc 4,1-12), e passou a noite em oração na montanha, antes de escolher os doze apóstolos (Lc 6,12). Costumava rezar também nas sinagogas com os judeus (Lc 4,16), ensinou os discípulos a rezarem para que o Senhor enviasse trabalhadores para a sua colheita – Rogate (Lc 10,2) e louvou o Pai que revela o Evangelho aos pequenos (Lc 10,21). Jesus sabia que o Pai sempre ouvia as suas preces e gostava do silêncio do deserto onde costumava rezar (Lc 5,16; 9,18), mas também rezou no monte Tabor, quando foi transfigurado (Lc 9,28). Na cruz Jesus rezava pelos seus algozes (Lc 23,34) e entregou o seu espírito ao Pai (Lc 23,46). Essas são algumas das muitas passagens do evangelho de Lucas em que transborda o tema da oração. No livro dos Atos dos Apóstolos, quando Lucas apresenta o caminho das comunidades, ele também destaca a oração como uma atitude fundamental dos seguidores de Jesus: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma” (At 4,32) e “eram perseverantes no ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações” (At 2,42). Cf. MAIA, G. L. O Pai-Nosso palavra por palavra. São Paulo: Paulinas, 2020, p. 30.
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