Para enriquecer e iluminar nossa caminhada escolhemos um texto do evangelho de João com grande densidade teológica, que aparece logo depois do anúncio da traição de Judas e de Jesus dizer a Simão Pedro que ele o negará três vezes antes que o galo cante.[1] Este texto é parte das conversas de despedida e recomendações finais de Jesus aos discípulos, na última ceia, quando já estava próximo o fim da caminhada histórica do Messias. Até este momento Jesus cumpria a sua missão abertamente, apesar dos constantes e crescentes conflitos com as autoridades judaicas. Mas a realização do sétimo e último sinal que Jesus faz no Quarto Evangelho – aquele de ressuscitar o amigo Lázaro – foi a “gota d’água” que levou o Sinédrio a decidir matá-Lo.[2] Neste contexto da última ceia, do lava-pés e clima pascal, pouco antes da paixão de Jesus, situa-se o texto evangélico que desperta lindas meditações no coração e nos embala na missão evangelizadora.

 

Confira o texto:

“Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Não se perturbe o vosso coração. Se acreditais em Deus, acreditai também em Mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas; se assim não fosse, Eu vo lo teria dito. Vou preparar-vos um lugar e virei novamente para vos levar comigo, para que, onde Eu estou, estejais vós também. Para onde Eu vou, conheceis o caminho».”[3]

 

Das tribulações e perturbações à fé e adesão à pessoa de Jesus

 

 O texto começa com um convite de Jesus aos discípulos chamados a superar as tribulações e aprofundarem a fé em sua pessoa e no Pai. As palavras do Mestre soam como aquelas típicas de um “testamento” de quem sabe que está chegando a hora de sua partida – passagem / páscoa – para a casa paterna. No coração dos seguidores de Jesus, principalmente daqueles mais jovens, começa a bater com força algumas dúvidas sobre o futuro de sua vocação e missão. São questionamentos que rodam os corações, especialmente quando estão atravessando momentos de tribulações e incertezas. Nada mais natural à pessoa humana que encontra, se abre e acolhe, a partir da sua experiência de fé, o chamado do Senhor.[4] O próprio Jesus, desde a sua humanidade, experimentou uma “perturbação” e uma forte emoção diante da morte do amigo Lázaro. Tal experiência se repete diante da percepção que será traído e condenado à morte.[5]

 

Jesus sabe que se aproxima a “hora” de sua páscoa, o momento de passar deste mundo para o Pai.[6] Ele vive o drama de quem percebe e vê aproximar o sofrimento que culminará na tragédia do Calvário. Com os discípulos ele sofre, desde a sua humanidade de Verbo feito carne,[7] as angústias e tensões que podemos sintetizar em alguns questionamentos que certamente passam pela mente dos seus seguidores: Será que o Mestre vai morrer? Que futuro nos espera? Mas Deus permitirá tal sorte? São muitas as inquietudes e interrogações que pulsam naqueles corações e ninguém poderá negar que todas são legítimas.

 

Os discípulos percebem que algo está para acontecer. Porém sequer imaginam que dai a poucas horas Jesus será traído, preso, condenado e morto. Mesmo sem entender muito, eles são tomados pelo medo e a tristeza. Mas Jesus dirige uma palavra de esperança e um convite à fé: “Não se perturbe o vosso coração. Se acreditais em Deus, acreditai também em Mim.[8] Todos são chamados a superar as perturbações e a realizarem uma profunda experiência de fé no Pai através de Jesus. De modo claro o evangelista mostra a preocupação e a delicadeza de Jesus que conhece o coração de seus seguidores. Jesus trata de preparar, consolar e apontar para o Pai com uma atitude de extrema confiança e entrega nas mãos de Deus. Recordamos aquelas situações de crise, os momentos difíceis na vida das pessoas ameaçadas por tantas realidades que amedrontam e assustam.[9] É o medo dos inimigos, das ameaças externas e das fragilidades internas que levam aqueles que foram chamados a abandonarem o projeto, a recuar e a distanciar-se de Jesus que revela o rosto do Pai. Diante desta realidade, somos chamados a recordar a fidelidade de Deus que jamais abandona os seus eleitos. De fato, o Mestre não os abandonará, apenas vai ao Pai, participar da sua glória e preparar uma “morada” para os seus seguidores.[10]

 

A casa do Pai, lugar dos seguidores e seguidoras de Jesus

 

Continuando o diálogo, o Mestre explica aos discípulos como é a casa de seu Pai: “Na casa de meu Pai há muitas moradas; se assim não fosse, Eu vo lo teria dito.[11] Fica claro que o coração de Deus é o destino e a casa dos seguidores de Jesus. Ele, recorrendo a uma linguagem simples e profunda, novamente aponta para Deus que nos receberá em sua casa com tantas moradas, isto é, há lugar para todos. A expressão “meu Pai” indica a profunda relação de Jesus com o Pai.[12] Ao falar assim de Deus, Jesus manifesta sua plena comunhão com o Pai e se distingue de todos os homens, pois até aquele momento ninguém havia chamado Deus de “meu Pai”. Os discípulos são chamados a encarar as dificuldades da vida com muita fé e a descobrirem a proximidade de Deus que deseja estabelecer com eles uma relação de amor, como na intimidade de uma família reunida na casa Paterna.

 

De modo direto o autor do Quarto evangelho afirma que Jesus nos precede na morada de Deus: “Vou preparar-vos um lugar e virei novamente para vos levar comigo, para que, onde Eu estou, estejais vós também.[13] Jesus sofre com os seus seguidores e sente a mesma tristeza e angústia que eles experimentam. Mas continua sua missão com fidelidade e plena confiança no Pai. Ele está se preparando para deixar este mundo e ir para a casa do Pai onde preparará para os seus seguidores “um lugar”. Vemos a delicadeza de Jesus que declara seu profundo amor às pessoas quase dizendo que ele também sente muito tal separação. Mas consola a todos lembrando que o Cristo glorioso virá para levar os seus “para que, onde Eu estou, estejais vós também.” Esta promessa de Jesus de voltar e levar os discípulos consigo será retomada mais adiante quando o evangelista mencionará o dom do Espírito Santo, o Paráclito (Defensor).[14]

 

A “casa do Pai” com muitas moradas não é apenas uma indicação do futuro onde todos estarão juntos de Deus. Tal expressão assinala a misericórdia, a gratuidade e a bondade do Pai em relação aos seguidores do Filho, que vai preparar a todos um lugar junto à casa paterna. Ela também indica a comunidade dos seguidores de Jesus – a Igreja – que no cotidiano da vida se esforça para dar testemunho de sua mensagem condensada nos evangelhos. Quem aceita percorrer este caminho chega ao Pai e habita na sua casa. Jesus não fala de muitas casas com muitas moradas, mas de uma só casa com muitas moradas. Esta foi a forma utilizada por Jesus para nos ajudar a entender que o Pai deseja todos na sua casa, ao redor Dele. As “muitas moradas” assinalam o amor de Deus que acolhe todos na intimidade e aconchego de sua casa.

 

No Novo Testamento a casa é o lugar do anúncio da Palavra, da “Fração do Pão”, dos encontros, das reuniões e onde se toma as decisões da comunidade dos seguidores de Jesus.[15] São inúmeras as referências à casa na Sagrada Escritura. O próprio Jesus frequentou a casa dos discípulos e até dos fariseus. Nas casas ele anunciava a palavra, curava e até participava de banquetes. A casa é a origem e o lugar da Igreja nascente.[16] Aqui a metáfora da “casa” é relacionada à ideia de intimidade e familiaridade entre Jesus, os seguidores e o Pai, e não a uma simples indicação do edifício ou da residência.[17]

 

Se de um lado a frase de Jesus aos discípulos assinala a dimensão escatológica da história, quando todos são chamados a confiar na misericórdia divina e a compreender a vida como um verdadeiro êxodo rumo à “casa do Pai”,[18] de outra parte a “casa com tantas moradas” aponta para a dimensão comunitária e a vida fraterna daqueles que acolhem o convite de Jesus – “vinde e vede” – e seguem o Mestre.[19] De qualquer maneira, os discípulos precisam cultivar a fé Naquele que promete preparar para eles uma morada na casa do Pai. Também chamamos a atenção para os gestos de amizade e carinho de Jesus para com os seus seguidores dos quais ele quer estar para sempre junto: “virei novamente para vos levar comigo, para que, onde Eu estou, estejais vós também”. Esta realidade escatológica é experimentada ou antecipada, dentro dos limites da história humana, pela vivência dos discípulos entorno ao Mestre. [20] Com Jesus eles já formam uma comunidade, uma pequena Igreja que nasce para continuar a obra do Filho.

 

Colocar-se a caminho…

 

Depois de convidar os discípulos a perseverarem na fé e contar-lhes da casa do Pai, Jesus diz: “Para onde Eu vou, conheceis o caminho.”[21] O Mestre dá a entender aos seus discípulos que eles também deverão percorrer o mesmo caminho para chegarem à “casa do Pai”, isto é, à plena comunhão com Deus. Aliás, vocação é isso mesmo: é um chamado a fazer um caminho no seguimento de Jesus que nos leva ao Pai. Para o autor do Quarto Evangelho o acesso ao Pai se dá mediante Jesus, o Filho por ele enviado e que com ele forma uma só coisa.[22] Jesus é o caminho para o Pai, é a verdade personificada e o dom da vida, a salvação.[23] No Filho os discípulos são filhos porque creram em Jesus e “os que nele crerem deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.[24]

 

Daqui a importância de todos participarem da Igreja, casa da comunidade dos seguidores de Jesus e “casa do Pai”. Pois é na comunidade que vamos amadurecer na fé e dar testemunho de adesão à pessoa de Jesus cujo alimento é fazer a vontade do Pai e consumar a sua obra.[25] Jesus sente que sua missão está chegando ao final e dá a seus seguidores as últimas recomendações. Mas a lição derradeira será aquela de entregar a vida e “ir para o Pai”. Ele quer preparar para todos “um lugar” na casa de Deus onde há muitas moradas. Antes, porém, doará o Espírito Santo Paráclito para que seus discípulos possam viver como pessoas novas.[26] Uma vida nova a partir da vivência do amor, ou como Ele mesmo disse ao velho Nicodemos: “Quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus.”[27] É a partir deste encontro, adesão e comunhão de fé à pessoa de Jesus, que participamos da família de Deus, a Igreja: a casa do Pai que é a própria comunidade dos seguidores e continuadores da obra do Mestre.

 

Jesus é “o caminho” para os discípulos chegarem à casa do Pai. É por meio dele, Nele, que chegamos a participar da família de Deus. Recordamos que a “casa do Pai”, a comunidade, é o lugar da família, da vida dos que acolhem Jesus e participam em tudo do seu destino: Deus. Porém, os discípulos nem sempre compreendem as palavras de Jesus e a ele apresentarão seus questionamentos e, com muita liberdade, manifestarão suas inquietudes. Há certa dificuldade: eles, às vezes, pensam no sentido material, enquanto Jesus fala com um sentido espiritual. É o velho problema da comunicação, do entendimento da linguagem e das eventuais distorções e desencontros no decorrer da missão evangelizadora e do caminho missionário.

 

[1] Cf. Jo 13,38.

[2] Cf. Jo 11,45-54.

[3] Jo 14,1-4.

[4] Cf. Jo 1,35-51.

[5] Cf. Jo 11,33; 13,21.

[6] No Quarto Evangelho a palavra “hora” aponta para o Calvário, o momento da glória divina de Jesus, sua entrega na cruz e passagem para o Pai (cf. Jo 2,4; 7,30; 8,20; 12,23.27; 13,1; 17,1).

[7] Cf. Jo 1,14.

[8] Cf. Jo 14,1.

[9] Nos evangelhos o tema do “medo” aparece em diferentes contextos e formas (cf. Mt 10,28; 14,22-33; Mc 5,36; ). Em João vemos Jesus tranquilizar os discípulos e convidar todos a uma atitude de total abandono e confiança no Pai (cf. Jo 6,19-20; 8,51; 14,1; 16,33).

[10] São Paulo recordará aos Romanos: “Se somos filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, pois sofremos com ele para também com ele sermos glorificados” (cf. Rm 8,17, veja também 2Cor 5,1).

[11] Cf. Jo 14,2.

[12] O autor do Quarto Evangelho insistirá de diferentes maneiras em demonstrar que a salvação é obra do Pai que se realiza no envio do Filho, o “Salvador do mundo” (Jo 4,14.42).

[13] Jo 14,2-3.

[14] Cf. Jo 14,16.

[15] Cf. At 1,13; Rm 16,6; 1Tm 3,15.

[16] O anônimo autor da carta aos Hebreus nos recorda que a casa representa todos os que cultivam a fé e a esperança em Cristo (cf. Hb 3,6). São Paulo recordou à comunidade dos Coríntios que Jesus Cristo é o fundamento da casa (cf. 1Cor 3,11).

[17] São contínuas as referências à casa na Sagrada Escritura. Basta recordar do Egito denominado de “a casa da escravidão” (Ex 13,3), do povo de Israel que é a casa onde Deus habita e para Ele construiu uma morada (cf. 1Rs 7-8). Ou de Moisés a quem foi confiada a casa do Senhor (cf. Nm 12,7) e da palavra dos profetas. No Novo Testamento a casa é o lugar onde entra Jesus, e com Ele, a Salvação (cf. Lc 19,9), Recorda-se ainda de outras tantas passagens dos evangelhos como a anunciação de Maria, noiva de José, da casa de Davi… (cf. Lc 1,26.33). No começo do Quarto Evangelho Jesus reconhecerá o templo de Jerusalém como a casa de seu Pai (cf. Jo 2,16).

[18] Cf. Dt 1,29-33.

[19] Jo 1,39.

[20] A expressão “casa do Pai” retoma o tema escatológico e a fé do salmista que afirma que os justos habitarão na casa de Deus (cf. Sl 42,3-5; 84,5).

[21] Jo 14,4.

[22] Cf. Jo 14,4; 10,30; 17,22.

[23] Cf. Jo 14,6.

[24] Cf. Jo 1,12.

[25] Cf. Jo 4,34.

[26] Cf. Jo 14,16-20; 20,22.

[27] Cf. Jo 3,1-8.