«Jesus percorria, então, todas as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando toda enfermidade e moléstia. Ao ver as multidões, Jesus encheu-se de compaixão por elas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor. Então, disse aos seus discípulos: “A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi, pois, ao Senhor da colheita que envie trabalhadores para sua colheita”» (Mt 9,35-38 // Lc 10,2)

 

Desde o universo Rogacionista denominamos esta passagem do Evangelho de Mateus como a perícope do Rogate. Ela fecha a seção precedente do evangelho e introduz o grande discurso missionário de Jesus (Mt 10)[2]. Estes versículos que tocaram profundamente a pessoa do fundador, Santo Aníbal Maria, sintetizam aquilo que antecede e introduz quanto segue no Evangelho. Observa-se que o Discurso da Missão aparece depois do Sermão da Montanha, que assinala um caminho de santidade (Mt 5-7) e antes do Discurso sobre a Igreja (Mt 18). Desta maneira, Mateus nos convida a pensar a Igreja a partir da vivência das Bem-aventuranças e da missão. Talvez, muitos de nós pensaríamos primeiro a Igreja e depois a missão. Fica evidente que para Mateus a missão define e precede a Igreja. Pode-se afirmar que este evangelho se organiza a partir de cinco palavras chaves que sinalizam os cinco discursos – «Pentateuco» de Jesus: «Bem-aventurados», «Ide», «Reino dos Céus», «Igreja» e «Juízo universal» cujo critério é o amor.

No centro do Sermão da Montanha encontramos a oração do Pai-Nosso quando Jesus surpreende os discípulos ao apresentar a paternidade de Deus chamando-o de «Abbà – papai» (cf. Mt 6,9-13). Este primeiro discurso de Jesus, as Bem-aventuranças, não é a lei, mas o dom de uma vida nova indicada pelo Mestre, que segundo Mateus é o novo Moisés. A partir da frase que abre a perícope do Rogate temos uma apresentação sintética da pessoa e do ministério de Jesus. Ele é uma pessoa que caminha, um peregrino que se movimenta de cidades a povoados, mestre itinerante, educador – ensina e prega a Boa Notícia, atende os enfermos e os cura (cf. Mt 9,38). Este versículo inicial da perícope condensa a práxis messiânica de Jesus, que não se identifica com aquelas das lideranças religiosas do povo e «suas sinagogas».

 

Os verbos da missão: percorrer, ensinar, proclamar e curar

O texto do Rogate começa assinalando o movimento de Jesus, o Mestre que vai pelos caminhos, anuncia o Evangelho, a Boa Notícia do Reino e cuida dos mais fragilizados, os enfermos. Ao percorrer cidades e povoados, que na linguagem moderna diríamos área urbana e rural, Jesus mostra desprendimento e disposição para a missão recebida do Pai. Quer espiritual como fisicamente o carisma do Rogate nos coloca em movimento, nos desinstala e empurra para a itinerância missionária. Todavia, importa observar que não se trata de um movimento qualquer, mas de testemunhar e anunciar o «Evangelho do Reino». Pois, se nossos movimentos não proclamam com a vida e as palavras a Boa Notícia, significa que abandonamos a causa de Jesus: o Reino.

Nota-se que o verbo «percorria» é seguido de três gerúndios: «ensinando, proclamando e curando». Na dinâmica missionária, percebe-se que cada um destes verbos pede e aponta para os demais. Percorrer já é ensinar; proclamar é curar; curar é proclamar e ensinar… No centro desta realidade está o Reino e a pessoa de Jesus, sua vocação e missão. Jesus ensina o que lemos no Sermão das Bem-aventuranças, anuncia a Boa Notícia e dedica uma especial atenção aos enfermos, os bem-aventurados do Reino (cf. Mt 5,3).

 

A compaixão ao longo do caminho

Após o versículo introdutório da perícope carismática que sintetiza a vocação e missão do Filho, temos a revelação do coração de Jesus que vê as multidões com compaixão (Mt 9,36). Aqui o evangelista apresenta a dinâmica da misericórdia divina abreviada em três verbos: ver, sentir compaixão e agir. O verbo agir se traduz no mandamento do Rogate: «Pedi, pois, ao Senhor da colheita…» (Mt 9,38). O «ver» de Jesus é marcado pela experiência sintetizada nos verbos da frase anterior (Mt 9,35). Como Mestre itinerante ele vai ao encontro das pessoas e conhece os desafios da realidade – «vê». A compaixão do Mestre não é fruto de sentimentalismo ou espiritualismo, mas se dá na concretude da missão junto à «multidão cansada e abatida». Mateus observa que o povo está «como ovelhas que não têm pastor». Fica claro a valência social, econômica e política do Rogate. Trata-se de uma dura crítica do Messias que se comove diante da situação do povo de Deus.

Jesus percorre cidades e povoados. É o êxodo de Deus que sai para nos encontrar e salvar. É a «Igreja em saída missionária» que o Papa Francisco nos propõe não sem insistência e resistência[3]. O encontro com a multidão é marcado pela compaixão de Jesus. No Evangelho, normalmente Jesus vê a situação de miséria, sente compaixão e age curando e libertando a pessoa que está sofrendo. Na perícope do Rogate, este esquema apresenta uma curiosa variação: Jesus vê a multidão, sente compaixão e se dirige aos discípulos. Jesus nos surpreende porque diante da gritante realidade do povo e dos poucos trabalhadores para a colheita ele disse: «Pedi, pois, ao Senhor… Rogate». Jesus nos ensina que a missão não é uma tarefa que podemos dividir entre nós e resolvê-la com nossos esquemas e forças. O Mestre nos ensina a dirigir-nos ao Senhor da messe, ao dono da colheita numa prece confiante e esperançosa. Nas entrelinhas da frase de Jesus, percebe-se certa resistência dos discípulos que em um primeiro momento estavam disponíveis e entusiasmados para a missão, mas depois recuaram diante das dificuldades e desafios do trabalho na messe do Senhor. Em um primeiro momento todos estavam com a «síndrome de Isaías» = «Eis-me aqui, envia-me» (Is 6,8), logo compreenderam que o serviço na messe tem seu peso e não dispensa a força da fé e sacrifícios.

 

O dom da vista e do carisma

Antes de apresentar o mandamento do Rogate temos a experiência histórica de Jesus assinalada nos verbos: percorrer, ensinar, proclamar e curar. Todos estes verbos carregados de significados são seguidos pelo verbo «ver», sinal do encontro de Jesus com a realidade da multidão, consequência natural do «Verbo que armou a sua tenda no meio da humanidade» (Jo 1,14).

A compreensão e intensidade do Rogate passa pela experiência do «ver as multidões cansadas e abatidas». Surge, então, ao menos dois questionamentos: – Que coisa estamos vendo? – Quais são os traços da multidão que temos diante dos olhos? Se temos a coragem das perguntas é porque desconfiamos da nossa visão. Talvez, antes de rezar o Rogate devemos pedir ao Senhor da messe o dom da visão, ou melhor, o dom da sua visão, para olharmos com os olhos de Jesus.

Jesus viu a multidão cansada, abatida, sem pastores ou ao menos com lideranças pouco confiáveis, de escassa credibilidade e com uma proposta incapaz de plenificar os corações e salvar. Diante dos olhos temos uma multidão ferida e, muitos de nós também estamos machucados e abatidos. A imagem da messe abundante pronta para a colheita é positiva. Em todas as culturas a colheita é marcada pela alegria, o entusiasmo e a festa de uma grande safra. Frente o trabalho na messe, somos chamados a festejar a colheita, a dar testemunho de nossa alegria que contagiará outros operários para nos ajudar na missão.

 

Pedir apóstolos ou trabalhadores?

No evangelho de Mateus encontramos o termo grego «έργάται / έργάτας» (Mt 9,37.38). Este substantivo plural geralmente é traduzido por «trabalhadores» (Veja, por exemplo, na Bíblia de Jerusalém e também na tradução da CNBB). Uma coisa é certa: nas duas citações do Rogate (cf. Mt 9,35-38; Lc 10,2) Jesus manda pedir «trabalhadores» (= operários) e não apóstolos – «άποστέλλω». Recordemos que no Novo Testamento o termo «apóstolo» geralmente indica os Doze (cf. Mt 10,1-5; Mc 3,13-19). Podemos afirmar que entre os “trabalhadores” estão incluídos também os apóstolos. Mas, desde a perspectiva bíblica, não podemos reduzir o mandamento de Jesus ao pedido exclusivo por “apóstolos”.

Ao lado da perspectiva bíblica do Rogate, temos a tradição de nossa família religiosa que nos remete ao tempo do Santo Fundador. Este trazia no coração a eclesiologia de sua época com seu jeito próprio de compreender a Igreja. De qualquer maneira entendemos que a perspectiva bíblica e a perspectiva de nossa genuína tradição se complementam.

 

A quem Jesus dirige o mandamento do Rogate?

Jesus ensinou o Rogate ao grupo dos chamados e escolhidos, ou seja, aos discípulos. No contexto de Mateus, evangelho onde encontramos uma organização eclesial mais centralizada e coerente com o estilo judaico, Jesus pronuncia o imperativo Rogate ao grupo dos discípulos, dentre os quais serão escolhidos os apóstolos (cf. Mt 10,1-5). No primeiro evangelho a citação do Rogate precede a escolha dos Doze e aparece estreitamente vinculada a eles. Os Doze, mesmo sendo um grupo numericamente menor, assinalam o novo povo de Deus, a comunidade cristã. Trata-se de um grupo menor – os Doze apóstolos – que representa o grupo maior – todos os discípulos e discípulas do Senhor.

Em Lucas, onde a organização da comunidade é menos centralizada e mais participativa, ou ainda, menos institucional e mais carismática se comparada à comunidade de Mateus, o mandamento do Rogate aparece como um dever de todos e não apenas dos Doze, isto é, o Rogate lucano também é um mandamento de Jesus, dirigido a todos os seus seguidores.

Em conclusão, Jesus dirige o mandamento do Rogate a todos os seus seguidores: discípulos, discípulas e apóstolos = à comunidade cristã / a Igreja = o novo povo de Deus.

 

 

[1] Sacerdote Rogacionista, nasceu em 1964, natural de Passos/MG. Fez seus estudos em Teologia Bíblica na Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma). Foi assessor da Conferência dos Bispos do Brasil – CNBB e secretário do Departamento de Vocações e Ministérios do Conselho Episcopal Latino-Americano – Celam. Atualmente é conselheiro geral de sua família religiosa responsável pelo setor das paróquias, laicato e pastoral da juventude.

[2] No Evangelho de Mateus Jesus faz cinco grandes discursos. A intenção do evangelista é de apresentar Jesus como o novo Moisés, a quem eram atribuídos os cinco livros da lei, o Pentateuco. Estes discursos de Jesus são considerados o “Pentateuco de Mateus”. São eles: O Sermão da Montanha (Mt 5-7); Discurso da Missão (Mt 10); Discurso das Parábolas (Mt 13,1-52); Discurso sobre a Igreja (Mt 18) e Sermão do Monte das oliveiras (Mt 24-25).

[3] Cf. Evangelli Gaudium, 20.