Este é o primeiro versículo, do primeiro capítulo do primeiro livro da Sagrada Escritura. (Gn 1,1) Sabemos que os livros da Bíblia não tinham títulos. Seus nomes foram dados posteriormente e, em alguns casos, o título foi tomado a partir de uma palavra presente no início do texto que de alguma maneira manifesta e resume o seu conteúdo.[2] Aliás, este livro foi chamado de “Gênesis” por ser exatamente esta a primeira palavra do seu texto: “no princípio”, palavra que na língua hebraica significa “origem.

 

Nestas páginas vamos meditar sobre as origens do mundo e da humanidade conforme o primeiro capítulo do Gênesis. Seu autor deseja transmitir uma mensagem religiosa cheia de símbolos na qual vemos a ação divina que cria a humanidade. O livro não tem a pretensão de responder as intrigantes perguntas sobre a origem do universo e da vida, mas de chamar a atenção para o Criador. Deus está na origem de tudo, só ele pode criar e dar sentido à vida. Esta é a perspectiva da fé hebraica e cristã sobre a criação do universo.

 

Gênesis não é um tratado científico sobre a origem do universo e da humanidade que segundo os cientistas apareceu há aproximadamente 350 mil anos. Seu autor não tinha nenhuma das informações da atualidade sobre as células, as moléculas, o DNA… e não conhecia a teoria da evolução ou da explosão primordial denominada Big Bang. Para o Gênesis a terra é um disco plano formada por um único continente com água acima e abaixo. Acreditava-se que o céu era um firmamento de metal tendo as estrelas – “luzeiros” – colocados na parte inferior para separar a noite do dia.

 

As duas grandes partes do livro do Gênesis

 

O livro, composto em 50 capítulos, pode ser dividido em duas grandes partes. A primeira parte trata da origem do mundo e da humanidade onde o protagonista é Adão, que na língua hebraica não é um nome próprio, mas um substantivo coletivo o qual pode ser traduzido por “humanidade” ou com o artigo “o homem.” (Gn 1-11) A segunda parte narra a origem dos hebreus, o povo eleito de Deus e seus patriarcas: Abraão, Isaac, Jacó e o seu filho José. (Gn 12-50)

 

Os dois primeiros capítulos do Gênesis, com os quais começa a Bíblia, nos apresenta o plano original de Deus para toda a criação e, especialmente, para a humanidade. No capítulo 3 vemos as opções e as escolhas feitas pelo homem, pela mulher e seus filhos que rompem com a harmonia inicial da criação onde tudo era “bom”. A partir do capítulo 4 temos as consequências das escolhas humanas e as rupturas com o projeto de Deus. Depois do envenenamento pela serpente, da desobediência de Adão e Eva, da troca de acusações entre eles que até se escondem de Deus, vemos o conflito mortal entre os irmãos Caim e Abel. A crescente aventura humana levará ao dilúvio compreendido como uma grande purificação da humanidade chamada em Noé e na sua família a começar uma nova caminhada. Mas logo encontraremos o relato da Torre de Babel que assinala a diversidade das línguas, das culturas e algumas pretensões humanas. Porém, Deus não desiste e na sua bondade, convoca Abraão para começar uma nova história: a história do povo de Deus e da salvação que culminará com a encarnação do Verbo, Jesus Cristo, sua vida, morte e ressurreição.[3]

 

Autor e data do livro

 

Gênesis tem uma história e até mesmo uma pré história. Antes de ser um livro bem ordenado, dividido em capítulos e versículos, impresso em papel de boa qualidade e ser parte da coleção dos 73 livros da Bíblia, foi transmitido oralmente, de boca em boca, ganhando ou perdendo expressões e detalhes até finalmente ser costurado entorno do ano 400 a.C., por pessoas anônimas ligadas ao templo de Jerusalém após o retorno do exílio do povo de Deus na Babilônia (538 a.C.). O livro é fruto do trabalho de várias mãos até chegar a redação final que costurou as tradições disponíveis e apresentou as narrativas conforme encontramos hoje. Se a tradição judaica e cristã considerava Moisés como o autor do Gênesis e de toda a Torá, que consiste numa instrução e ensinamento para progredir no caminho da vida,[4] a crítica moderna reconhece o texto como fruto de um trabalho compilado no decorrer de várias gerações.[5]

 

O primeiro capítulo do Gênesis é o resultado do trabalho de sacerdotes que fizeram a amarga experiência do exílio na Babilônia (587-538 a.C.). Estes líderes religiosos queriam manter acesa a chama da fé e da esperança no coração do povo que sofreu a escravidão na Babilônia e entraram numa crise sentindo-se abandonados por Deus. Talvez, diante do sofrimento do exílio, alguns até pensaram em aderir à religião e à divindade dos babilonienses, o deus Marduk. Mas estes sacerdotes e levitas com vínculos ao templo de Jerusalém farão de tudo para manter viva a fé do povo na soberania divina que é o princípio da Criação.

 

Gênesis lê a história à luz da fé e procura responder aos desafios do presente. O texto não foi redigido no momento em que os fatos aconteceram como sucede na atualidade, mas é uma reflexão que vai amadurecendo e ganhando formas e contornos no decorrer de sucessivas gerações. O livro levou uns quinhentos anos para ser elaborado e chegar à sua redação final. Este longo processo começou durante o reinado de Salomão (971-931 a.C.), se estendeu até o período do exílio na Babilônia e do pós-exílio, quando o livro recebeu os últimos retoques (585-400 a.C.). Na sua composição encontramos uma certa influência de mitos da Suméria, da Babilônia dentre outras narrativas sobre a criação como Athahasis e a epopeia de Gilgamesh.

 

É muito difícil perseverar na fé em meio a dura escravidão imposta pelo império Babilônico ao povo de Deus. Não é fácil acreditar no Deus da vida e Senhor da história quando na prática Nabucodonosor imperava de maneira violenta contra o povo de Israel. Neste contexto o autor narra a bondade e a beleza de Deus que logo será contrastada pelo pecado e a desobediência da humanidade envenenada pela serpente.

 

Gênesis apresenta duas narrativas sobre a criação do mundo e da humanidade. A primeira segue o esquema de uma semana na qual seis dias são dedicados à criação e o sétimo é consagrado pelo Criador. Ela mostra Deus criando dia após dia e no final, depois de concluir a sua obra, ele descansou no último dia da semana. (Gn 1,1-2,4a) Na segunda narrativa temos a descrição do paraíso, a criação do homem a partir do barro e sua solidão até a criação da mulher da costela de Adão. (Gn 2,4b-25) Trata-se de um texto que nos ajuda a meditar sobre as relações humanas, e principalmente aquela entre homem – mulher e o matrimônio.

 

A semana da criação – primeira narrativa

 

A criação é narrada na forma de um lindo poema que se desenvolve no decorrer de uma semana. Trata-se de uma metáfora para compreender a criação do mundo e meditar sobre o valor e o significado da obra divina. É também uma crítica ao sistema imperial que escraviza e maltrata as criaturas e despreza o Criador.

 

Como normalmente acontece nos poemas, temos palavras chaves, repetições e expressões densas de significados que manifestam a profundidade e a fé do seu autor e de sua comunidade. Nesta reflexão vamos apresentar o texto bíblico colocando em evidência cada dia da semana da criação e destacando as repetições e palavras chaves do poema.

 

Introdução à primeira narrativa da criação

 

No princípio, Deus criou o céu e a terra.(v.1)

A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. (v.2)

 

Estes dois versículos iniciais introduzem toda a narrativa. No primeiro observamos uma síntese da ação criadora de Deus (v.1) seguida de uma breve descrição do caos que havia antes da criação. (v.2)

 

A expressão com a qual começa o Gênesis – “no princípio” – não é um convite para voltar no tempo até chegar ao momento primordial da origem do mundo, mas nos chama a olhar com a profundidade da fé e a perceber que Deus está na raiz de toda a criação. Ele é o fundamento, “o princípio” de toda existência que surge como resposta à sua palavra. Aqui temos o “princípio / início” da criação, do diálogo de Deus com a humanidade e de toda a história da salvação.[6]

 

A criação nasce a partir da força criadora da palavra de Deus. O autor repetirá uma expressão ao longo da narrativa: “Faça-se”. Outros dois verbos aparecem diretamente relacionados com a palavra de Deus: “disse” e “chamar”. Gênesis enfatizará a eficácia da palavra de Deus que uma vez pronunciada ordena e realiza. É um chamado vocacional dirigido a toda criação.

 

Ao longo desta semana encontramos dez ordens divinas que indicam a força criadora da palavra:

  1. Faça-se a luz
  2. Faça-se um firmamento entre as águas
  3. Juntem-se num único lugar as águas…
  4. A terra faça brotar vegetação: plantas, que deem semente…
  5. Façam-se luzeiros no firmamento do céu…
  6. Fervilhem as águas de seres vivos e voem pássaros…
  7. Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei as águas do mar…
  8. Produza a terra seres vivos…
  9. Façamos o ser humano à nossa imagem e segundo nossa semelhança…
  10. Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a…

 

Uma tradição dos rabinos de Israel comenta que o mundo foi criado mediante dez palavras ditas por Deus a semelhança de dez outras por ele pronunciadas no monte Sinai – os dez mandamentos – estabelecendo uma aliança com o seu povo por meio de Moisés.

 

No final da narrativa notamos a repetição do verbo principal: “criar” e a expressão: “o céu e a terra”, que indica o universo na sua totalidade. (Gn 1,1-2 ; 2,4a) Ou seja, o poema conta com uma introdução e uma conclusão que abre e fecha esta primeira narrativa da criação. Confira os versículos introdutórios e a conclusão desta narrativa.

 

Introdução

 

No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. (Gn 1,1-2)

 

Conclusão

 

Essa é a história da criação do céu e da terra. Quando o Senhor Deus fez a terra e o céu.” (Gn 2,4a)

 

Dois verbos que manifestam a ação de Deus: “fazer” e “criar”. O verbo “criar” aparece sete vezes no poema. (Gn 1,1.21.27; 2,3-4a) Somente Deus pode “criar”. Por trás do verbo “criar” está a intenção e a surpresa de Deus que desperta maravilha e estupor no coração humano. Só Deus pode trazer à luz algo novo, inédito e diverso da atividade humana, que normalmente é descrita com o verbo “fazer”, uma vez que o verbo “criar” é reservado exclusivamente ao Criador.

 

Observamos também a diferença entre “criar” e “gerar”. Pois o verbo “criar” permite uma clara diferenciação e distância entre o Criador e a obra criada, além de abrir espaço para uma relação entre ambos. Se o autor do Gênesis usasse o verbo “gerar” daria uma ideia de emanação. Seria como se a criatura emanasse, saísse, do Criador, mas tal ideia é contrária ao pensamento do “Livro das Origens”.

 

De acordo com o Gênesis, antes da criação havia o caos onde era impossível a vida: “A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas.” (Gn 1,2) A terra não estava apenas “deserta” e “vazia”, mas coberta pelas trevas, que segundo o salmista caracteriza a região dos mortos (cf. Sal 88,12-13), e o “abismo” indica as águas descontroladas do dilúvio. (cf. Gn 7,11; 8,2)

 

A introdução desta primeira narrativa da criação termina assinalando a presença do “Espírito” que pairava sobre as águas. Na verdade, não se trata do Espírito Santo de Deus, mas de um vento violento que aumenta a situação caótica antes da criação. Nesta frase o substantivo “Elohim = Deus” não é tradução do nome divino, mas um superlativo para destacar a situação caótica agravada pela força violenta do vento.

 

Primeiro dia (vv. 3-5)

 

Os três primeiros dias da semana são marcados pela criação e separação: luz / trevas, água superior / água inferior, mar / terra firme e os vegetais. Os outros quatro dias por obras de ornamentação: sol, lua, estrelas… Ao todo podemos contar oito obras do Criador agrupadas em seis dias.

 

As trevas, que na introdução eram vistas como algo negativo – “as trevas cobriam o abismo” (v,2), agora são separadas da luz e ocuparão o seu próprio espaço. Deus não destrói nem mesmo as trevas para criar a luz, mas estabelece uma relação entre ambas que recebem uma função temporal e permitirá de contar o tempo em noite e dia de uma semana que está apenas começando.

 

Deus disse: “Faça-se a luz”! E a luz se fez. Deus viu que a luz era boa. Deus separou a luz das trevas. À luz Deus chamoudia” e às trevas chamounoite”. Houve uma tarde e uma manhã: o primeiro dia.

 

Depois de cada obra criada, Deus olha para a sua criação e diz: “viu que a luz era boa.” Não se trata de um auto elogio diante do criado, mas sinal de que aquilo que foi chamado à existência corresponde ao projeto do Criador. A Deus cabe também dar o nome e confirmar a identidade do que foi criado manifestando o seu pleno senhorio.

 

Segundo dia (vv.6-8)

 

No tempo da redação do Gênesis se pensava que a abóboda do céu era uma cúpula sólida ou uma espécie de grande tenda onde Deus retinha as águas superiores o que explicava as chuvas, a neve e até o dilúvio quando foram abertas “as comportas do céu.” (Gn 7,11)

 

Deus disse: “Faça-se um firmamento entre as águas, separando umas das outras”. E Deus fez o firmamento. Separou as águas debaixo do firmamento, das águas acima do firmamento. E assim se fez. Ao firmamento Deus chamou “céu”. Houve uma tarde e uma manhã: o segundo dia.

 

No segundo dia notamos a ausência da expressão que manifesta o juízo de Deus sobre a bondade do criado. Na verdade esta obra ainda será completada no dia seguinte. É interessante observar também que ao longo da narrativa cada dia é formado por uma “tarde” e uma “manhã” e não o contrário. Desta maneira o escurecer de cada tarde é seguido pela luz de um novo dia. Trata-se de uma sutileza do autor que convida o povo de Deus à perseverar na esperança apesar do sofrimento e exílio na Babilônia. Gênesis nos recorda que às trevas sempre cedem lugar à luz.

 

Terceiro dia (vv. 9-13)

 

Como todos os dias, o terceiro também começa assinalando a força criadora da palavra de Deus, que continuará agindo sobre as águas para concluir a obra começada no dia anterior.

 

Deus disse: “Juntem-se num único lugar as águas que estão debaixo do céu, para que apareça o solo firme”. E assim se fez. Ao solo firme Deus chamou “terra” e ao ajuntamento das águas, “mar”. E Deus viu que era bom. Deus disse: “A terra faça brotar vegetação: plantas, que deem semente, e árvores frutíferas, que deem fruto sobre a terra, tendo em si a semente de sua espécie”. E assim se fez. A terra produziu vegetação: plantas, que dão a semente de sua espécie, e árvores, que dão seu fruto com a semente de sua espécie. E Deus viu que era bom. Houve uma tarde e uma manhã: o terceiro dia.

 

Em muitas culturas antigas as águas eram consideradas perigosas e ameaçadoras como no caos antes da criação. (v.2) Aqui a palavra de Deus estabelece um lugar bem definido para as águas – “Juntem-se num único lugar as águas que estão debaixo do céu” – para que sejam elemento fundamental para a vida. Logo Deus dará nome de “terra“ao solo firme” e de “mar” “ao ajuntamento das águas.

 

De maneira genial o autor do Gênesis mostra o domínio de Deus que dá nome ao criado – “terra” e “mar” e desperta uma pergunta sobre quem cuidará da criação. É importante observar também que Deus opta por não fazer tudo sozinho, mas dá aquilo que já foi criado a possibilidade de participar da criação gerando vida: “A terra faça brotar vegetação: plantas, que deem semente, e árvores frutíferas, que deem fruto sobre a terra, tendo em si a semente de sua espécie. E assim se fez.” Notamos três grupos de vegetação: a verdura que não tem o grão visível, as plantas com grãos e as árvores com os seus frutos e sementes.

 

Deus não apenas cria a vida, mas também dá à vida criada a força da reprodução: “A terra produziu vegetação: plantas, que dão a semente de sua espécie...” Outra vez repete o esquema que aparecerá várias vezes no poema para mostrar a bondade e a beleza da criação: “E Deus viu que era bom. Houve uma tarde e uma manhã.”

 

Quarto dia (vv. 14-19)

 

No quarto dia Deus criou os astros que são colocados no firmamento criado no segundo dia. Os astros estão no céu para iluminar a terra, permitir distinguir o dia da noite e organizar o calendário e as festas.

 

Deus disse: “Façam-se luzeiros no firmamento do céu, para separar o dia da noite. Que sirvam de sinais para marcar as festas, os dias e os anos. E, como luzeiros no firmamento do céu, sirvam para iluminar a terra”. E assim se fez. Deus fez os dois grandes luzeiros, o luzeiro maior para presidir ao dia e o luzeiro menor para presidir à noite, e também as estrelas. Deus colocou-os no firmamento do céu para iluminar a terra, presidir ao dia e à noite e separar a luz das trevas. E Deus viu que era bom. Houve uma tarde e uma manhã: o quarto dia.

 

É interessante observar que os astros não recebem o nome de “sol” ou “lua”, que na época do Gênesis eram considerados como divindades. (cf. Dt 4,19) Para o autor os astros são apenas luzeiros para “presidir ao dia e à noite e separar a luz das trevas.” O quarto dia termina com Deus que outra vez “viu que era bom” e tudo correspondia harmonicamente ao seu projeto.

 

Quinto dia (vv.20-23)

 

No quinto dia reaparece o verbo “criar” e a benção divina sobre os seres vivos que recebem dois imperativos: “sede fecundos e multiplicai-vos.”

 

Deus disse: “Fervilhem as águas de seres vivos e voem pássaros sobre a terra, debaixo do firmamento do céu”. Deus criou os grandes monstros marinhos e todos os seres vivos que nadam fervilhando nas águas, segundo suas espécies, e todas as aves segundo suas espécies. E Deus viu que era bom. Deus os abençoou, dizendo: “Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei as águas do mar, e que as aves se multipliquem sobre a terra”. Houve uma tarde e uma manhã: o quinto dia.

 

Sexto dia (vv.24-31)

 

A diversidade das espécies assinala a diferença querida por Deus ao criar os seres vivos. No sexto dia Deus que não cria o homem e a mulher “segundo a própria espécie”, mas à sua “imagem e semelhança.” O termo “imagem” normalmente era usado para indicar uma estátua ou reproduzir um determinado objeto. Aqui indica a humanidade, é um sinal de Deus, uma representação viva do Criador. O homem e a mulher aparecem no ápice da criação e são as únicas criaturas chamadas a assemelhar-se ao Criador.

 

Deus disse: “Produza a terra seres vivos segundo suas espécies, animais domésticos, animais pequenos e animais selvagens, segundo suas espécies”. E assim se fez. Deus fez os animais selvagens segundo suas espécies, os animais domésticos segundo suas espécies e todos os animais pequenos do chão segundo suas espécies. E Deus viu que era bom. Deus disse: “Façamos o ser humano à nossa imagem e segundo nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todos os animais selvagens e todos os animais que se movem pelo chão”. Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou. Homem e mulher ele os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se movem pelo chão”. Deus disse: “Eis que vos dou, sobre toda a terra, todas as plantas que dão semente e todas as árvores que produzem seu fruto com sua semente, para vos servirem de alimento. E a todos os animais da terra, a todas as aves do céu e a todos os animais que se movem pelo chão, eu lhes dou todos os vegetais para alimento”. E assim se fez. Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o sexto dia.

 

O verbo – “façamos o ser humano...” – usado no plural, assinala a totalidade da humanidade. Talvez Deus está se dirigindo aos anjos da corte celeste (cf. 1Re 22,19) ou é apenas um “plural deliberativo” utilizado para exprimir a decisão divina de criar o homem e a mulher. (cf. 2Sm 24,14) Outros pensam ser um indicativo à Santíssima Trindade.

 

Notamos a passagem ou mudança do verbo “fez / fazer / façamos” ao verbo “criar” que se repete por três vezes com um acentuado destaque à criação da humanidade, obra prima das mãos de Deus: “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou. Homem e mulher ele os criou.

 

Gênesis faz questão de afirmar que Deus criou por livre iniciativa  “Homem e mulher” e os abençoou. A benção se manifesta na capacidade de gerar vida e multiplicar-se enquanto que a ausência de fecundidade era considerada sinal de castigo.

 

A tradução literal não é “homem e mulher”, mas “macho e fêmea.” De qualquer maneira o autor indica a diversidade sexual da humanidade chamada não apenas a ser imagem, mas também semelhança de Deus que ordena: “Sede fecundos e multiplicai-vos.” Esta mesma ordem será dada a Noé e aos seus filhos depois do dilúvio (cf. Gn 9,1) e aparecerá nas promessas aos patriarcas de Israel. (cf. Gn 17,16; 26,2-4; 28,3)

 

A ordem do Criador dada ao homem e a mulher de “dominar” deve ser compreendida não como uma ação violenta de poder e força, mas cumprida a partir do temor de Deus que na sua bondade provê o alimento para a humanidade e todos os seres vivos. Estes alimentos vegetais não significam que todos sejam vegetarianos, mas indica a harmonia e a paz onde o alimento de uns não signifique a morte de outros.[7] O sexto dia termina com o Criador contemplando “toda” a criação e “viu que tudo era” não apenas “bom”, mas solenemente afirma: “muito bom”. Assim o Gênesis destaca o lugar especial do homem e da mulher no projeto do Criador.

 

Sétimo dia (Gn 2,1-3)

 

Ao término da semana Deus separa um dia para si e consagra uma jornada de repouso e descanso. O autor também critica o sistema que escraviza o ser humano tirando-lhe o direito do repouso semanal e de um dia dedicado ao Criador.

 

“Assim foram concluídos o céu e a terra com todos os seus elementos. No sétimo dia, Deus concluiu toda a obra que tinha feito; e no sétimo dia repousou de toda a obra que fizera. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nesse dia Deus repousou de toda a obra da criação. Essa é a história da criação do céu e da terra. Quando o Senhor Deus fez a terra e o céu.

 

Gênesis mostra o repouso de Deus e a benção santificadora do sétimo dia. É interessante notar que chegamos ao fim da primeira narrativa da criação do mundo sem uma definição sobre o Criador. Em nenhum momento o autor apresenta um conceito sobre Deus, mas mostra a sua obra sendo criada sem violência ou destruição o que diferencia das narrativas antigas sobre a origem do universo. Deus não destrói as trevas, nem elimina o abismo ou faz cessar o vento forte do caos primordial. O Criador impõe limites onde cada elemento ocupa o seu próprio lugar e faz harmonia com outro. Observa-se ainda que ao longo da narrativa Deus dispensará três bençãos às suas criaturas: a primeira será dada aos seres vivos (v.3), a segunda sobre o homem e a mulher (v.28) e a terceira ao sétimo dia. (Gn 2,3)

 

Gênesis termina esta primeira narrativa sem mencionar a criação de Adão feito do barro e de Eva tirada da costela do homem. Ambos habitavam o paraíso do Éden e representam cada um de nós. (Gn 2,4b-25) Estas são reflexões da segunda narrativa da criação que meditaremos em outra oportunidade. Fica a fé no Senhor da vida e da história que “no princípio criou o céu e a terra”. Permanece também a responsabilidade pessoal e comunitária diante da criação confiada aos cuidados do ser humano.[8]

 

                                                                                                                                     Pe. Gilson Luiz Maia, RCI.

 

 

[1] Os textos citados nesta meditação são conforme a tradução da CNBB, “Bíblia Sagrada,” Editora Canção Nova, São Paulo, 2010.

[2] Os hebreus nomeiam os primeiros cinco livros da Bíblia – o Pentateuco – também conhecidos como “os cinco rolos” / “Torá” – com as expressões iniciais de cada um na língua hebraica: “No princípio”, “Eis os nomes”, “Chamou”, “No deserto” e “As palavras”, Na versão grega os nomes são: “Gênesis” = Origem, “Êxodo” = saída, “Levítico” = livro da tribo sacerdotal de Levi, “Números” = recenseamentos, “Deuteronômio” = segunda Lei. Podemos citar também como exemplo, o Apocalipse, palavra que significa “revelação” e com a qual começa e dá o nome ao último livro da Bíblia. (cf. Ap 1,1)

[3] São Paulo, escrevendo aos cristãos de Roma reconhecerá Jesus Cristo como o “Novo Adão.” Cf. Rm 5,12ss.

[4] Cf. Ex 17,14; 24,4; Dt 31,9.24-26

[5] No Pentateuco encontramos quatro fontes principais ou escolas literárias com suas respectivas tradições religiosas: a javista representada pelo reino do Sul, Judá, e foi assim denominada por chamar Deus de Javé ainda antes mesmo da revelação a Moisés (cf. Ex 3); a fonte eloísta que chama Deus de Elohim e ligada ao reino do Norte, Israel; a fonte sacerdotal a qual pertence a primeira narrativa da criação (Gn 1) e a fonte deuteronomista que representa a tradição profética e deu origem aos movimentos reformistas no reino de Israel e de Judá.

[6] No início do quarto evangelho, João usa o mesmo termo para falar do Verbo: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. No princípio ele estava com Deus.” (Jo 1,1-2)

[7] Depois do dilúvio a relação entre os seres humanos e destes com os animais oscilará entre a violência e a paz. O profeta Isaías sonha um mundo pacificado onde o lobo e o cordeiro viverão juntos (cf. Is 11.6-9).

[8] Ao final desta meditação sugerimos uma (re) leitura da encíclica do Papa Francisco “Laudato si – sobre o cuidado da Casa Comum.” O documento foi publicado em junho de 2015 e trás importantes reflexões. Nele o Papa chama todos a uma conversão ecológica, recorda que o meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio da humanidade e assinala as relações vitais do ser humano com Deus, com o próximo e com a terra cuja a ruptura leva ao pecado. Francisco insistirá em nossa responsabilidade diante da criação como família universal convocada para cultivar e guardar a obra do Pai.