Na noite de Natal meditamos uma das páginas mais lindas do evangelho de Lucas, que mostra a simplicidade de Deus que nasce no meio de nós e nos inspira na montagem do presépio. [1]

 

O evangelista dará ênfase na naturalidade e normalidade do nascimento do Menino Deus, que a tradição cristã celebra na virada do 24 para o dia 25 de dezembro. A data foi escolhida para contrapor à principal festa religiosa dos romanos, do Sol Invencível, o solstício. De fato, com a cristianização do Império Romano, muitas celebrações pagãs foram associadas às festas cristãs. De qualquer maneira, é importante observar que os “evangelhos da infância” não são inocentes narrativas dos acontecimentos da infância de Jesus, elaboradas para evangelizar as crianças e promover a imaginação infantil. Mas são reflexões adultas, dirigidas aos cristãos maduros na fé. Trata-se de uma importante chave de leitura para pessoas já iniciadas na fé que poderão entender, sem ingenuidade, o “Cristo Senhor”.

 

“César Augusto publicou um decreto, ordenando o recenseamento de toda a terra. Este primeiro recenseamento foi feito quando Quirino era governador da Síria. Todos iam registrar-se cada um na sua cidade natal. Por ser da família e descendência de Davi, José subiu da cidade de Nazaré, na Galiléia, até a cidade de Davi, chamada Belém, na Judéia, para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto, e Maria deu à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria. Naquela região havia pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta do seu rebanho. Um anjo do Senhor apareceu aos pastores, a glória do Senhor os envolveu em luz, e eles ficaram com muito medo. O anjo, porém, disse aos pastores: ‘Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor. Isto vos servirá de sinal:Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura.’ E, de repente, juntou-se ao anjo uma multidão da corte celeste. Cantavam louvores a Deus, dizendo: Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados.’[2]

 

Lucas começa a sua narrativa mencionando o grande imperador César Augusto (30 a.C a 14 d.C), que ordenou, a partir de sua potestade, equiparada a uma divindade, “um recenseamento de toda a terra.” O recenseamento imperial não era uma boa noticia para o povo que conhecia este instrumento de dominação utilizado para atualizar o valor das taxas e o número dos soldados que deveriam garantir o domínio de César. Era a época de ouro da famosa “paz romana” experimentada depois de um período de muitas guerras e turbulências.[3]

 

Na Sagrada Escritura somente Deus tem autoridade para ordenar o recenseamento do seu povo. Porém, o recenseamento de Deus não era para contar as pessoas, reduzí-las a um número com a finalidade de controlar, mas para que não faltasse ninguém do povo eleito. O evangelista, com sutileza, não apenas inseri o nascimento do Messias na história universal, mas confronta os dois modos de reinar: César Augusto que conta para descobrir cifras e dominar o povo, e Deus que não quer que nenhum de seus filhos se perca.

 

Depois de situar o nascimento de Jesus no arco da história e assinalar o poder de Augusto sobre “toda a terra”, Lucas cita outro grande personagem da época: “Quirino era governador da Síria.” Desta maneira podemos contextualizar a narrativa do evangelho e confrontar com os registros da época. Mais adiante, ao narrar o início da vida pública de Jesus, o evangelista repetirá este procedimento. Lucas apresentará os personagens, o ambiente geográfico e as datas de modo bem definido. Escreve: “No ano décimo quinto do reinado do imperador Tibério, sendo Pôncio Pilatos governador da Judeia, Herodes, tetrarca da Galileia, seu irmão Filipe, tetrarca da Itureia e da província de Traconites, e Lisânias, tetrarca da Abilina, sendo sumos sacerdotes Anás e Caifás, veio a palavra do Senhor no deserto a João, filho de Zacarias.”[4] Estes procedimentos deram a Lucas a fama de historiador.

 

Após mencionar o grande imperador César Augusto e o governador Quirino o evangelista cita José, “da família e descendência de Davi” que sobe de Nazaré a Belém “para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida.” Percebe-se uma escala decrescente do ponto de vista social, político e econômico na importância dos personagens: César – Quirino – José – Maria e por fim o menino Jesus. O evangelista mostra o poder dos grandes deste mundo e desce a escala chegando ao humilde menino da manjedoura. Ou seja, Lucas começa com os grandes da terra para chegar a simplicidade da manjedoura onde o recém-nascido está no centro.

 

“Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto, e Maria deu à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria”. Lucas, ao afirmar – “filho primogênitoassinala que Maria consagrou o seu filho ao Senhor, conforme ensinava a tradição de Israel. Significa que o filho não lhe pertence, mas veio para cumprir os designos de Deus.

 

O evangelista faz questão de mostrar os cuidados maternos de Maria que “enfaixou e o colocou na manjedoura.” Lucas mostra a “normalidade” de Jesus que nasceu igual a toda pessoa e recebe os cuidados naturais de sua mãe assumindo em tudo a condição humana e a nossa fragilidade.

 

A “manjedoura” recorda a profecia de Isaías que critica Israel por não reconhecer a presença de Deus em seu meio enquanto até o boi e o asno o reconhece. Escreveu o profeta: “O boi, conhece o seu dono, e o jumento, a manjedoura do seu Senhor.[5] Alguns biblistas questionam a presença do boi e do jumento devido a ausência de documentos históricos – nenhuma passagem dos Evangelhos fala da presença destes animais – e ao fato de que uma mulher dificilmente escolheria dar à luz em meio aos animais. A tradição de colocar os animais no presépio encontra sua origem em um texto apócrifo do séc. VI, conhecido como o Evangelho do pseudo-Mateus. O fato é que a descrição da cena com o boi e o jumento junto a Sagrada Família conforme aparece neste texto mantém grande impacto no imaginário popular.

 

Ao afirmar “não havia lugar para eles na hospedaria”, Lucas não critica a falta de hospitalidade dos habitantes de Belém, o que contraria a boa fama de Israel de ser um povo acolhedor, mas aponta para a necessidade de Maria dar à luz em um lugar reservado, que embora muito simples era comum para as famílias humildes daquele tempo.[6]

 

São Cirilo de Alexandria, Bispo e Doutor da Igreja, reconhece na manjedoura de Belém – nome que significa “casa do pão” – o altar da humanidade. Se nela os animais encontram o seu sustento, a manjedoura também nos recorda o altar onde temos o pão verdadeiro que desceu do céu numa clara relação entre a encarnação, a morte de Jesus na cruz e a Eucaristia. Na manjedoura Deus declara o seu amor apaixonado pela humanidade. Ele não nasceu no palácio de César Augusto, mas no meio do povo simples fazendo-se um de nós. Segundo Lucas, Deus se faz frágil, indefeso, que precisa dos cuidados de uma mãe… Mas é o Salvador do mundo: “O anjo, porém, disse aos pastores: ‘Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor.

 

Para Lucas, quem deseja encontrar Deus precisa buscá-lo na fragilidade do menino na manjedoura e não entre os poderosos deste mundo. Para o evangelista Deus se fez Menino, filho da Virgem Maria e recebe a visita dos pastores os quais eram desprezados e marginalizados, considerados impuros e por isso proibidos de entrar no templo para rezar. Os pastores tinham a má fama de viverem de furtos e se quer podiam dar testemunho a favor ou contra alguém por não merecerem nenhuma confiança. Mas a estes foi dado a “grande alegria”, a boa nova: “anjo do Senhor apareceu aos pastores, a glória do Senhor os envolveu em luz, e eles ficaram com muito medo.” Os pastores, que “passavam a noite nos campos,” são os primeiros a ir ao encontro do “Salvador, que é o Cristo Senhor,” após receberem o evangelho – a boa notícia – dos anjos. Jesus nasce na periferia, longe dos ambientes importantes, e do centro de poder do reino deste mundo.[7] Vale recordar, que ainda hoje nascem e morrem crianças em extrema pobreza nas periferias do mundo.

 

As faixas que envolvem o recém-nascido assinala a humanidade de Jesus e apontam para a sua morte na cruz quando o seu corpo será envolvido em faixas para o sepultamento.[8] No gesto da jovem mãe temos uma profecia: Maria, que reclina o menino na manjedoura, verá seu filho depositado no ventre da terra envolto em faixas.

 

A notícia do anjo aos pastores é direta e sem rodeios: “Isto vos servirá de sinal: Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura.” Não se trata de uma criança diferente, com auréola luminosa e outros pormenores especiais, mas de “um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura.” Os pastores encontraram um Deus simples conforme nossa condição humana. E de repente aparece uma corte não como aquela de César Augusto, mas “uma multidão da corte celeste. Cantavam louvores a Deus, dizendo: Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados.

 

Pe. Gilson Luiz Maia, RCI.

[1] A palavra “presépio” vem do hebraico e indica estábulo, manjedoura.

[2] Lc 2,1-14

[3] Lucas, assim como Mateus, situa o nascimento de Jesus durante o reinado de Herodes, entre os anos 6 e 4 antes de Cristo.

[4] Lc 3,1-2

[5] Is 1,3

[6] O termo usado pelo evangelista – “katalyma” – indica uma hospedaria ou uma sala onde talvez morava a família de José. Cf.1Sm 1,18; 9,22; Lc 22,11.

[7] Pilatos interrogará Jesus sobre o seu reinado (cf. Lc 23,3) e no evangelho de João  ele declara : “Meu reino não é deste mundo.” (Jo 18,36)

[8] Cf. Lc 24,53